0:00 min       A ESCUDEIRA     CONTO
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WEBTVPLAY APRESENTA
A ESCUDEIRA


Conto de
Marcos Vinícius da Silva





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Njord, Deus da prosperidade e do mar,
Junto ao oceano, teu sopro vai pelo ar,
Ondas do mar, o teu nome a cantar,
Rompendo as águas, uma rede vou lançar,
Dando graças a Ti, muitos peixes vou pescar”

 

A vila de Nielisen estava longe de ser um lugar muito importante. Talvez o próprio rei Leno nem soubesse da sua existência. O único tráfego considerável naquela vila era o de cavalos e carroças  carregando frutas e legumes pelas ruas estreitas. As casas, escuras, sujas e um pouco apertadas, todas elas melancólicas e com um mesmo tom marrom acinzentado de madeira de carvalho, todas  construções esguias e com telhados triangulares, rodeadas por pontes e córregos fedidos. Nas árvores não havia verde algum, só o tom laranja e vermelho das folhas que iam de inverno a inverno e salvo alguns pequenos jardins com tulipas rosas – claras em um quintal ou outro. O único momento em que o povo de Nielisen tinha vontade de deixar suas casas e comemorar era a chegada do forte do inverno,  quando os primeiros flocos nevados começavam a formar um límpido tapete branco e felpudo nas ruas…e o inverno estava chegando.

 

Nielisen não possuía um governante fora o rei Leno, e muito menos qualquer tipo de bastião ou guarda da cidadela, apenas uma antiga torre desativada onde dormiam os bêbados e onde as aves marinhas iam fazer seus ninhos. Porém, após o ataque à cidade vizinha de Baliensen, toda costa agora permanecia em estado de alerta, mesmo que nada houvesse a se fazer caso os nórdicos resolvessem invadir. Longíqua e esquecida, ainda assim possuía alguma utilidade, a cidade era ponto de travessia para o interior do reino e também uma potencial rota de comércio.


Em um dia nublado e de muito vento vindo da costa, uma garotinha corria por aquelas vielas, descalça e vestindo apenas trapos esgueirando-se entre as pedras e ripas de madeira com suas pequenas mãos  fechadas segurando algo. Nielisen já era normalmente fria, principalmente naquela altitude, onde vivia constantemente rodeada por uma neblina densa, que parecia nunca ter fim. Mas algo estava diferente, nem mesmo o ar parecia o mesmo. Lufadas de vento uivante jogavam os cabelos daquela garotinha para trás enquanto corria, como as labaredas cor laranja que sobem de uma fogueira em uma noite gélida.


A pequena garota adentrou em um pequeno e modesto casebre e correu até o quarto, onde uma mulher de longos cabelos ruivos e olhos sorridentes costurava uma peça de roupa.


– Mãe, veja! – disse a garotinha enquanto abria as mãozinhas e mostrava o pequeno animal que carregava: um filhote de tartaruga.


– Onde pegou essa tartaruga? – perguntou a mãe.


– Eu estava brincando na praia e ela apareceu na areia.


A mãe, com uma expressão de surpresa no rosto, largou a roupa de lado e tomou o animalzinho para si.


A pequena tartaruga gemia baixinho.


– Posso ficar com ela? – perguntou a menina com aquele olhar inocente.


– Kaira, devia tê-la deixado na praia. O lugar das tartarugas não é dentro de casa, é no mar.


– Vou ter que devolvê-la então? – perguntou a menina tristonha e com voz chorosa.


– Sim, meu amor. Infelizmente.
A mãe colocou o animalzinho nas mãos da garota novamente.


– Mas pode ficar com ela até o final da tarde. Depois vou com você e devolvemos ela ao mar.


Kaira voltou a saltitar e saiu do quarto levando o bichinho consigo. A mãe dela entendia que Kaira sempre houvesse de procurar algo para se entreter, desde que sua irmã, um ano mais nova, veio a falecer pela febre que tinha atingido a vila seis meses atrás. Ela tinha que se divertir sozinha.

 

Mais tarde…

 

A mãe de Kaira entrou pela porta do casebre e encontrou a filha sentada à mesa dando algumas folhas para a tartaruga.


– Come Judith!


A mãe se aproximou e sentou ao lado da garotinha, que muito esperta, já entendeu o olhar de sua mãe.


– Vamos ter que levar ela, não é mesmo?


– Sim. – respondeu a mãe. – Está pronta?


As duas andaram de mãos dadas através do caminho pedregoso que ia até a costa. Kaira era uma menina de 12 anos que ia saltitando na areia branca, espalhando seus cabelos de fogo pelo vento e colorindo de laranja a Nielisen de tons cinzentos. Chegando ao mar, agachou-se e depositou Judith carinhosamente aonde a espuma do mar vinha.


– Adeus, Judith, quem sabe nós nos veremos algum dia.


Com lágrimas nos olhos, observou o bichinho bater suas pequenas nadadeiras em direção ao mar e ser levada por uma onda. A mãe agachou-se ao seu lado e acariciou suas costas e as duas permaneceram ali por alguns segundos. Foi quando, sem alguma explicação, ouviu-se um tremendo estrondo vindo ao longe, como um trovão. Kaira olhou em volta na praia e nada viu, exceto algumas gaivotas que sobrevoavam a beira do mar. Olhou para o céu cinzento e imaginou ter vindo de lá aquele som. Então, olhou para sua mãe e a viu com os olhos arregalados de pavor mirando o horizonte. Foi quando Kaira se virou e teve a pior
sensação de terror de sua vida: imensos barcos com carrancas talhadas na proa, carregando dezenas de homens em seu interior.


As bandeirolas dos barcos tremulavam com o vento e com o timbre da corneta que um homem que estava apoiado à carranca do primeiro barco tocava. De imediato entendeu o que acontecia: os nórdicos estavam chegando.


– Filha! – a mãe puxou a garota pela mão e as duas correram pelo caminho de volta.


O som das trombetas pareciam cada vez mais próximos e cada vez que elas olhavam para trás aqueles barcos dobravam de tamanho. Seus tripulantes remavam rápido e a mãe da garota chorava, pois sabia o que estava prestes a acontecer. Seria o fim de Nielisen, assim como foi com Baliensen?

 

– Os nórdicos chegaram! Corram! Se escondam! – gritava a mãe de Kaira enquanto passava pelas vielas apertadas.


Em pouco tempo as pessoas começaram a espalhar a notícia para que todos em Nielisen ficassem sabendo o que estava acontecendo. Kaira e sua mãe entraram correndo no casebre e fecharam com trincos todas as portas e janelas, mesmo sabendo que isso não adiantaria em nada caso os vikings fizessem questão de entrar.


– Vamos nos esconder e ficar em absoluto silêncio. – disse a mãe.


Ela olhou para um crucifixo pendurado na parede e fez o sinal da cruz, clamando por proteção.


A cidadela ficou em total silêncio. Tudo parecia deserto, como se fosse uma cidade – fantasma. Então, de repente, o caos tomou conta. O som ensurdecedor daquela corneta, misturado à urros raivosos, passos pesados e som de armas batendo em escudos de madeira dava eco nos ouvidos dos moradores. Além disso, podia se ouvir conversas arranhadas em uma língua desconhecida.


Do lado de fora dos casebres o que havia era mais ou menos uma centena de guerreiros: homens e mulheres. Homens enormes, alguns carecas com tatuagens nas cabeças e outros de cabelos grandes e com tranças, assim como em suas barbas…as mulheres, todas com cara pintada, exibiam cabelos também trançados. Anéis pendiam dos cabelos de todos e eles carregavam escudos, machados, facas e arcos e flechas. Eles destruíam tudo por onde passavam e se divertiam com seus feitos. Arrombavam as casas uma a uma, arrastando as indefesas pessoas e fincando sem piedade os seus machados em seus crânios. Àqueles que se aventuravam fugir correndo eram abatidos pelos arqueiros. Ouro, prata e aço eram saqueados, crianças arrastadas e alguns se enfiavam dentro dos casebres para estuprarem as mulheres. Aquela vila, em poucos instantes, transformara-se em um mar de sangue.


Kaira observava tudo horrorizada por uma fresta entre as tábuas da porta, enquanto sua mãe, escondida e tremendo atrás de um móvel, fazia sinal para que a garota saísse dali. Kaira estava perplexa com o que estava vendo nas ruas, quando tomou um grande susto ao ver um par de olhos azuis pintados de preto ao redor das órbitas encarando-a subitamente através da fresta. Kaira deu um grito e caiu para trás, arrastando-se como podia para longe da porta antes mesmo dela ser golpeada com um  chute e arrombada. O homem, dono daquele par de olhos azuis, entrou sorrindo com um machado na mão. Era um homem magro e alto, com pouco cabelo e cavanhaque comprido. Ele tinha um andar esguio e o couro de seu traje estava escurecido por um sangue seco.
Ao ver a garota, completamente assustada, ele sorriu debochadamente lançando-lhe um olhar perturbador. Aproximou-se dela e agachou-se próximo a ela.


– Olá pequena! – mas ela não compreendera aquela língua estranha.


Ele retirou a faca da cintura e com a lâmina alisou os cabelos da garota, que engoliu à seco o choro.


– Não fica brava comigo, pequena.
Então aquele nórdico se levantou e olhou ao redor. Ouviu os lamentos de uma mulher atrás de um móvel.


Sorriu de forma cínica e foi até onde estava a mãe de Kaira. Com uma mão empurrou o armário para o lado assustando Kaira mais ainda. Puxou a mãe da garota pelos cabelos enquanto ambas gritavam. Ergueu o machado na altura dos seus olhos e, estava pronto para desferir o golpe fatal, quando ouviu-se a mãe começar rezar baixinho encarando a filha.


– Mamãe! – disse a menina chorando.

 

Aquele nórdico fez um gesto de desapontamento, virou o machado e desferiu um golpe contra a cabeça da mulher com o cabo de sua arma, desacordando a sua vítima. Se agachou diante da mulher e puxou com força uma fina corrente de ouro e brincou com ela entre os dedos.


– O que é isto? – disse ele.


Foi então que um outro nórdico entrou pela porta. Era visivelmente mais robusto do que aquele que ali estava e tinha cabelos e barba castanhos compridos, ambos trançados. Ele trazia consigo um escudo e um machado.


– Que está fazendo Thórin? – perguntou o homem robusto.


O nórdico robusto encarou Kaira e a ameaçou erguendo o machado.


– Temos que matar todos! – disse ele.


– Não! – respondeu Thórin batendo seu machado contra o escudo do homem mais forte.


– Sendo piedoso agora?


– Esta eu vou levar comigo. Freya precisa de uma escrava em casa. E esta é perfeita.


O nórdico mais forte fez uma cara de reprovação virou as costas e se retirou dali com passos pesados. Thórin estendeu a mão para a garota, que hesitou em lhe dar sua mão e ficou observando sua mãe desacordada.


– Tem sorte de eu não ser igual meu amigo Baldúr. Ele teria estuprado e matado vocês. Mas isto não seria justo com uma menina adorável que nem você.


Kaira prestara atenção mas não entendia nada do que ele falava. Ela achou que poderia ser interessante aceitar sua ajuda e levou sua mão na direção da mão dele. Ele a puxou com força e a colocou sobre seus ombros.


– E por ser adorável você vem comigo.


Kaira ia se debatendo, mas logo pensou que se fingisse estar desmaiada seria mais fácil passar desapercebida pelos outros invasores. Enquanto Thórin a carregava, Kaira abriu somente uma fresta dos seus olhos e ficou mais horrorizada à cada passo dado. Todos aqueles corpos, o sangue, membros arrancados, cabeças decepadas e aqueles homens e mulheres comemorando com o ouro, prata e aço de sua gente.


Um outro guerreiro se aproximou de Thórin com correntes e moedas nas mãos. Ele tinha cabelos compridos em uma longa trança e barba longa com anéis.


– Veja Thórin! O conde vai ficar louco com tudo isso!


Ele observou a menina nos ombros do amigo.


– Porque está levando a criança? – perguntou aquele guerreiro.


Thórin parou diante do guerreiro amigo.


– Freya gosta de crianças. E eu preciso de uma escrava que a ajude enquanto eu estou fora.


– É só uma criança. Porque não leva uma mulher adulta? Seria mais útil. TeriaTeria muitas outras utilidades, se é que tu me entende.


Thórin sorriu o seu sorriso debochado e continuou seu trajeto.


– Crianças não fazem rebelião. – respondeu ele.


Kaira ouviu o som da água batendo nos cascos do barco e então, Thórin parou de caminhar e a largou sentada ali. Ela abriu os olhos.


– Silêncio! – disse o guerreiro colocando o dedo indicador sobre a boca.


Mil coisas passaram pela cabeça da garota. Pensou na sua mãe, pensou no seu povo. Pensou em fugir. Mas de nada adiantaria. Sabia que em poucos minutos estaria sendo levada por aqueles demônios para a terra deles. Fechou os olhos lacrimejantes e ficou quieta no chão do barco ouvindo os guerreiros comemorarem com toda riqueza do seu povo. Kaira sabia que provavelmente nunca mais veria sua mãe nem o seu povo. Com lágrimas nos olhos, pediu a Deus que a protegesse nesta jornada desconhecida.


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